segunda-feira, 29 de junho de 2009

O Caroço de Butiá

Meu nome é Cirila. Sei que é um nome diferente dos nomes de hoje. Coisas da minha avó. Minha avó é muito católica. Pelo menos ela diz. Acredito que era um pouco mais quando estava na barriga da minha mãe. Faz muito tempo que eu nã o vejo ela ir a igreja. Ela acompanha a religião pelo rádio e pela televisão. Diz que está muito velha pra ficar andando por aí.

Conta minha avó Madalena que quando ficou grávida de mim, minha mãe teve muitos problemas e ela, a minha avó, fez uma promessa: tudo deveria correr bem. Nascer com saúde, minha mãe ficar viva, ganharia o nome do santo do dia. Santo. Digo santo falando como os adultos falam. Santo no masculino. Santo, como se nã o houvesse santa.

Nasci no dia dezessete de março. Neste dia, diz minha avó que olhou num almanaque não existem mais e ela ainda guarda um até hoje num local que ela chama de "meu relicário", com as páginas amareladas e todo furadinho de traças. Olhou nesse livrinho/ revista, sei lá e descobriu que o santo do dia ou os santos do dia, eram três: Cristiano, Narciso e Cirilo de Jerusalém. Não me perguntem como foi a escolha, isso minha avó também não sabe explicar. Depois que ela me contou, fiquei imaginando que poderia ter o nome de Cristiana. Os amigos e amigas me chamariam de Cris, assim como chamam o Cristian Chavez, o carinha que mais gosto na novela Rebelde e na banda RDB. Deixa pra lá. Hoje já estou acostumada com esse nome e os meus e as minhas coleguinhas me chamam de Ci.

A minha professora de literatura falou que alguns índios acreditam numa deusa, bruxa, sei lá o que que eles chamam de "Ci" . Gosto disso. Tenho doze anos. Acho que sou uma criança normal. Apesar de meu lado bruxinha, sou normal. Falo muito em minha avó porque vivo a maior parte do tempo com ela. Meu pai e minha mãe trabalham fora. Meu pai é o Humberto. Chamo ele de Beto como a mãe chama. Beto é caminhoneiro. Desde pequenininha vejo ele muito pouco. Falo com ele quase sempre por telefone, por carta ou por emeil. É verdade. Meu pai é um homem moderno. Com mais de cinqüenta anos aprendeu a "mexer" em computador para conversar com a gente por emeil's. Vez por outra conversamos direto pelo computador. Acho muito legal. Ele é o meu principal amigo virtual, mesmo que ele não tenha tempo, todo dia eu deixo um recado pra ele.

Minha mãe é a Luciana. Todo mundo chama ela de Lu. Como disse, também trabalha fora. Sai muito cedo. Quando ainda estou dormindo. Volta cansada no final da tarde. Mesmo assim ainda arruma a casa, faz a janta, lava a roupa e "passa a lição" comigo. Essas coisinhas que dona de casa e mãe têm que fazer.

Sou inteligente. Acho que sou. Tenho boas notas na escola. Quando crescer, quero ser escritora. Gosto muito de ler e escrever. De vez em quando "lá na escola" a professora manda a gente ler em voz alta. Adoro. A maioria do pessoal da sala nã o gosta. Reclama. Adoro. Sou uma criança normal. Acho que sim. Ninguém nunca me disse o que é ser uma criança normal mas acho que sou. Minha avó; sempre ela, diz que dou muito trabalho. Vive gritando comigo. Não pode fazer isso; não pode fazer aquilo. Fala dos meus horários de ir pra escola e proíbe de ir na casa de minhas amigas. Não posso ver televisão ou de ficar no computador até tarde. Falam muito de direitos da criança. Será que a criança nã o tem o direito de faltar a aula pra ficar com os amigos e amigas ou ficar no computador até tarde?

Vó Madalena diz que ainda não posso ter amigos. Só amigas. Eu acho errado. Tenho alguns amigos sim. Gosto deles e não vejo nada errado nisso. Gosto de jogar bola com meus amigos e amigas. Outro dia por causa disso quase que me acontece uma tragédia. Tava jogando bola com meus amigos e amigas quando chegou meu tio Zé. O nome do meu tio é José Luiz mas a gente chama de "Tio Zé". Ele mora no sítio no interior. Sempre quando vem de lá ele trás frutas, legumes, verduras e cereais. Nesse dia ele trouxe um saco de butiá. Frutinhas madurinhas, docinhas, super gostosas.

Não que seja gulosa, coloquei umas três frutinhas na boca. Coloquei e voltei a jogar bola. De repente, recebo uma bolada na cabeça e zup, engulo o butiá com caroço com tudo. Foi horrível: o butiá ficou atravessado na minha garganta e fiquei sem poder falar. Me trouxeram para minha avó. Foi uma confusão daquelas lá em casa. A situação não mudava. Minha respiração falhando. Meus amigos e amigas acompanhando meu sofrimento. A porta cheia de gente. Minha avó super nervosa. Já havia decidido que daquela não escapava. Era o que de pior podia me acontecer: morrer tão jovem.

Depois da minha musa, a Britney Spears "ficar louca", cortar o cabelo careca e agredir um monte de jornalistas e fotógrafos; depois de ler nos jornais e revistas e ver na televisão que meu ídolo rebelde, o meu amadinho, o lindinho dos meus sonhos; o Cristian Chavez gosta de homem, era uma das piores situações que podia me acontecer. Morrer. Morrer tão nova. Me levaram pro postinho de saúde do bairro. Lá disseram que não podiam fazer nada. O aparelho de raio x não estava funcionando. Lá vou de ambulância pro hospital de pronto socorro. Odeio som de sirene de ambulância. Pior mesmo é estar dentro. Numa maca.

Me faltava o ar. Estava decidido: ia morrer. Minha avó nunca me disse como é morrer. Nunca tive tempo de pensar no assunto. Era a primeira vez que tinha um caroço de butiá atravessado na garganta. O barulho da sirene da ambulância, a agitação dos carros em volta, o céu passando apressado através dos vidros da janela do carro e, aproveitando, ia me despedindo de tudo que fazia parte de minha vida: a Mônica, o Cebolinha, o Cascão; o Tom e o Jerry; o Chaves, o Kiko, a dona Florinda; meus CDs e DVDs do RDB apesar do Cris; meus amigos e amigas do ORKUT; meus sonhos de ser escritora;.... tudo estava ali passando pela minha cabeça. A morte estava bem perto.

A ambulância atravessou o portão do hospital. Deu uma freada brusca. Senti que alguma coisa havia mudado. Parecia que a minha respiração tinha voltado ao normal. Queria falar mas tinha medo. E se a voz nã o saísse? E se já tivesse realmente morrido? O médico examinou minha garganta. Falou pro meu tio que estava tudo normal. Meu tio Zé perguntou se era grave. O médico com uma cara de ironia disse que era. Receitou um remédio. Meu tio não entendeu o recado do médico. Apressado, me fez tomar uma dose maior do que a receitada. Passei vergonha e deixei o taxista irritado por ter borrado o banco. Hoje eu não vou a aula porque tenho de ficar indo no banheiro toda hora. Eu adoro a vida.

Geraldo Potiguar do Nascimento

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