sexta-feira, 18 de setembro de 2009

ENCONTRÃO NA RUA DA PRAIA


Geraldo Potiguar do Nascimento

Eu e a Fabiana nos conhecemos através de um encontrão. Eu sei que é uma forma bastante esquisita de duas pessoas se conhecerem, mas foi. Um encontrão na Rua da Praia. Rua da praia, na realidade, é uma rua que não existe. É a rua mais famosa dos gaúchos, mas é uma rua que não existe. A Rua da Praia não existe desde o século dezenove. Apesar de sua "inexistência", todo gaúcho sabe onde é a Rua da Praia. E não só os gaúchos: por causa da "esquina democrática", que é a esquina da Rua dos Andradas com a Borges de Medeiros, essa rua é conhecida em todos os cantos do nosso país e até no exterior. Mesmo quem nunca veio aqui no Rio Grande do Sul já ouviu falar da "rua da praia".
Eu e a Fabiana tivemos ou cometemos um encontrão na Rua dos Andradas, nome oficial da rua da praia e em questão de minutos lá estávamos lado a lado em banquinhos, numa daquelas lancherias dalí da rua, dividindo um refrigerante,
apesar do frio do inverno, em bora os raios do sol insistissem em se manter clareando o dia, ou melhor: a tarde. A nossa tarde.
Minha mais nova amiga faz "História" na ULBRA (Universidade Luterana Brasileira - Canoas/RS), de Canoas, na região metropolitana de Porto Alegre, é uma empresária de uma pequena empresa na área de comunicação e garante que por dever de ofício vai a Universidade de Passo Fundo participar da Décima Jornada Nacional de Literatura.
A nossa conversa gira por vários assuntos: rua da praia, como não podia faltar; democracia; Rio Grande do Sul; Brasil e o Nordeste, dentre outros, já que sou um nordestino "perdido" aqui nessas terras dos pampas. Falamos de outros assuntos e em seguida descambamos para temas interligados como: amor, sedução, traição e solidão. Observações não faltaram em nossa cavaquiação. Falamos da mídia, contamos piadas, lembramos como as piadas contadas, que também fazem parte da mídia, minimizam a importância da mulher no processo histórico de transformação da sociedade.
Lembramos as páginas e mais páginas que existem na internet fazendo "gracinhas" com as mulheres e... na continuação colocamos em evidência as "galhofas" que existem "contra" os homens transformando a nossa mídia numa verdadeira "guerra dos sexos". Pérolas como: "os homens são iguais a pão de forma ou pão de sanduíche, como queiram: são quadrados, fáceis de dobrar e se desmancham com facilidade". Ou aquela que diz que: "os homens são iguais caracois: pegajosos, gosmentos e acreditam que a casa é deles".
Apesar de estar conversando com uma futura historiadora, não falamos muito sobre a morte do diplomata Sérgio Vieira de Melo, assassinado no Iraque onde representava a ONU (Organização das Nações Unidas) e tentava normalizar a vida do povo no pós-guerra e as conseqüências desse acontecimento para a paz mundial. Não falamos sobre o interminável conflito árabes/judeus. Não comentamos sobre estes primeiros meses do Governo Lula, nem falamos da tentativa do ator Arnold Schwarzenegger em governar o estado da Califórnia.
Lembramos de Obirici(1), a lenda histórica da índia rejeitada que teve suas lágrimas transformadas em rios que terminam formando a baía do Guaíba que banha a cidade de Porto Alegre. Dessa lenda pulamos para um acontecimento real ocorrido na zona sul da capital dos gaúchos, ao lado do arroio Passo Fundo: "Gislene,negra linda, passista dos "Bambas",
namorava Dino, componente da bateria da mesma agremiação. Ao saber que o seu amado 'dividia' os seus prazeres com outra 'pretendente' tomou uma decisão: poria fim a tudo. Chico Dé, escoador de confiança da droga da região foi quem bancou o empréstimo do trabuco".
Na hora indicada, porta do colégio, lá estava Dino e Claudia, conhecida "de vista" de Gislene trocando ósculos e amplexos". "Dois estampidos chamaram a atenção dos transeuntes que não observavam, até aquele momento, a balbúrdia, tão comum na saída dos discentes. "Dois tiros. Dois mortos: Dino de vinte e um anos e Claudia de dezesseis".
O desespero estava estampado nos olhos de Gislene. Seu amor havia morrido; e pelas mãos dela. Sera ainda julgada por outro crime premeditado e executado. Não resistiu a pressão interna. Seus neurônios não a deixaram em paz. Várias opções foram sugeridas por parentes e amigos: mudança de endereço, indo viver com uma tia numa pequena cidade do interior; entrar no Movimento dos Sem Terra; trabalhar como palhaça, trapezista ou qualquer outra modalidade num circo mambembe e outros. Seu pai, separado de sua mãe, entrou na história. Sugeriu uma saída honrosa se é que para uma situação como esta a opção é válida.
A idéia do velho seria procurar um bom advogado e se entregar na primeira hora. Ré primária, com bom comportamento, atenuantes, etc, cumpriria no máximo um terço da pena o que poderia, com sursis, ficar em liberdade cumprindo apenas formalidades de apoio comunitário.
Gislene resistiu. Resistiu a todas as opções e pressões. Mas como dizem os mais velhos: "do destino não se foge".
Quem saiu naquele fatídico dia de agosto encontrou o corpo de uma bela jovem, gestante, de dezoito anos dentro do Arroio Passo Fundo. Seu sangue verteu à vontade e seguiu o rumo do arroio transformando as, normalmente claras, águas da baía do Guaíba.
Fabiana pensa. Franze a testa. Arruma os cabelos de cachinhos castanhos e pintura descolorando descobrindo o preto do natural. Comenta a lenda de Obirici (a índia). Pensa mais um pouco e por fim, volta ao diálogo. Fala das fatalidades dos dias de hoje e da desvalorização da vida. Comenta a "rigidez" no pensar dos adolescentes. O conservadorismo na "educação dirigida aos homens" e muitos outros assuntos que passam muitas vezes longe do "saber acadêmico".
O Encontrão na Rua da Praia... ou será Rua dos Andradas? Ou as duas cognominações valem ? Os assuntos variados, as piadas, a lenda de Obirici e a cruel realidade principalmente das periferias das grandes cidades deixaram a minha mais nova amiga meio atordoada. Adolescente, vinte e dois anos, acadêmica, segue Fabiana sem entender, o quanto gostaria, o nosso mundo. No seu íntimo, desejava que fosse diferente. Que o amor fosse a chave de tudo, afinal, o amor é lindo. E fácil. É muito fácil amar. Assim como um encontrão na rua da praia.

Copyright © 2003 by Geraldo Potiguar do Nascimento -
Todos os direitos reservados.




(1)As lágrimas de Obirici

A origem dos nomes das maiorias dos bairros que formam a capital gaúcha se perde no tempo. Em muitos casos já nem há vestígios dos elementos que serviram para que recebessem a denominação pela qual são identificados até os dias de hoje. è assim com o passo da Areia, tradicional bairro localizado na zona norte de Porto Alegre. A areia já se foi há muito tempo. Aquela área da cidade está toda urbanizada. O passo, até resistiu, mas não faz muito tempo também deixou de existir. Antigamente, quando índios ainda habitavam a região, era um riachinho chamado por eles de Ibicuiretã, que significa " rio de areia ", " água que corre sobre pó " ou ainda " passo da areia ". Brotava na baixada da Boa Vista e seu leito sinuoso passava pelo meio da areal.
Com a urbanização, o passo foi canalizado e virou um valão. Suas águas tornaram-se sujas e barrentas e atravessavam o bairro espalhando mau cheiro. Com certo alívio, os moradores locais viram o córrego ser aterrado no início dos anos 80, quando ali começou a construção de um shopping center.
Apesar deste fim um tanto melancólico, a origem do Ibicuiretã está ligada a uma linda história de amor. Quando um homem branco sequer tinha pisado naqueles areais, ali se instalara uma tribo tapi-mirim, da nação dos tapes. Espremidos entre o Guaíba e morros, volta e meia precisavam defender sua taba com paus, pedras, lanças, arco e flecha de ataques de tribos inimigas. Os tapi-mirins viviam em permanente alerta.
E como não tinham cacique, eram comandados por um chefe guerreiro. Se esse chefe adoecia, envelhecia ou morria, cabia ao conselho de anciãos escolher um novo líder para as batalhas que viriam.
Depois de eleito, o chefe, geralmente jovem e solteiro, começava a despertar a
atenção das índias solteiras. Aquele que até outro dia era apenas mais um entre os seus, se convertia em um abençoado de Tupã, um escolhido dos deuses. E, assim, suscitava uma disputa entre as donzelas da aldeia. Todas passavam a usar seus enfeites mais bonitos, suas tintas mais coloridas, seus perfumes mais cheirosos. Tudo para conquistar o coração do agora poderoso guerreiro. Mas com Obirici, uma linda jovem daquela tribo, os sentimentos não funcionavam deste jeito. Desde curumim ela nutria amor por um único índio.
Nunca havia confessado sua paixão, no entanto. Amava em segredo, em silêncio, sozinha.
Quis o destino que o índio por quem ela era apaixonada fosse escolhido o chefe
guerreiro dos tupi-mirins. Obirici pensou, então, que chegara o momento para se declarar:
- Grande chefe, estou aqui para dizer que te amo. Quero ser tua esposa, passar a vida ao teu lado.
- Tu és a única a declarar amor por mim, Obirici.
- Outra índia se apresentou como tua pretendente ?
- Sim, ela diz me amar como ninguém mais me amaria.
- Mas eu te amo tanto quanto ela, mais até. E desde sempre. Desde que soube o que era amar alguém ...
- Eu acredito, Obirici, mas estou indeciso.
Diante do tímido amor de sempre e da paixão repentina, o índio não soube o que fazer. Foram dias tristes para Obirici. Passou noites em claro, chorando, soluçando, odiando amar. Como o novo chefe não chegava a uma decisão, ele próprio pediu ao sábio conselho de anciãos estabelecesse uma solução para o impasse. Assim foi feito: as duas pretendentes disputariam um torneio de arco e flecha. A vencedora seria a mulher do chefe guerreiro.
No dia do desafio, toda a tribo reuniu-se para assistir o grande acontecimento. Nunca a disputa para ser a esposa do chefe tinha chegado tão longe. Muitos repararam que Obirici demonstrava estar muito nervosa, enquanto que a concorrente parecia ganhar confiança com toda aquela gente como assistência. Obirici transbordava insegurança. Tremia seu arco, tremia sua flecha, tremia seu braço, suas pernas, seu corpo todo. O mundo tremia em seu redor. Suas flechas atingiam o alvo sem muita convicção, como se tivessem desistido do vôo no meio do caminho.
A outra índia parecia mais afetiva ao arco e à flecha. Seus disparos eram precisos, fulminantes, certeiros. Cada flecha sua que acertava o alvo era como se acertasse também o coração de Obirici. Aos poucos sua vitória foi se tornando evidente. Perdeu Obirici. Perdeu a batalha, perdeu seu amado, perdeu a razão. Enclauzurada em sua oca, só fazia chorar. Não comia, não bebia, não dormia, quase esquecia até de respirar. No dia do casamento do homem que havia rejeitado seu amor, não aguentou de sofrimento. Saiu da aldeia correndo, em prantos, para longe, em direção a um ponto mais alto do areal.
Era noite de lua cheia, e para lua Obirici chorou. Era noite estrelada, e para as
estrelas Obirici chorou, uma lágrima para cada ponto brilhante do céu. Chorou tanto que sua face aos poucos foi se convertendo em lágrimas, seu corpo todo se
transformando, se desmanchando, se desfazendo. Obirici virou suas lágrimas, e suas lágrimas viraram um riacho, que foi fazendo seu caminho pela areia até chegar à aldeia. Primeiro assustados, depois consternados, os tapi-mirins perceberam que o rio eram as lágrimas de sofrimento de Obirici. Chamaram o arroio de Ibicuiretã, e os açorianos quando aqui chegaram o rebatizaram de Passo da Areia, que deu nome ao bairro.
Não há mais areia, não há mais passo, mas Obirici ainda existe. Próximo ao viaduto que leva o seu nome e que se ergue sobre a avenida Assis Brasil, a índia está imortalizada em uma escultura, com os braços para o céu, pedindo um alento à Tupã.




Nota: Este texto sobre a lenda de Obirici foi tirado da internet. Há outros textos, poemas, crônicas sobre o assunto.